Desde criança, na região da zona da mata de Minas Gerais, no município de Fervedouro, Angela Maria Lourenço sonhava em dirigir caminhões e/ou ônibus. Olhava para a estrada e se imaginava na boleia de um grande veículo. Se aventurou na política aos 18 anos ao ser candidata a vereadora de Fervedouro pelo atual MDB. Não se elegeu, mas tirou a carteira de motorista e foi trabalhar na prefeitura.
Dinâmica e ávida por desafios, Angela, com a carteira D na mão, resolveu sair da cidade natal, sempre com o pensamento nas estradas da vida. Com 22 anos ficou sabendo, por um primo, que a empresa de ônibus São Silvestre estava com vagas abertas para cobradores. Então, arrumou as malas e foi fazer o teste no Rio de Janeiro. Não saiu mais da cidade maravilhosa.
Em uma entrevista feita por vídeo, ao vivo, ela conta, de sua sala de trabalho no bairro Estácio, de quando foi aprovada para trabalhar como cobradora. “Senti que o sonho de chegar ao volante estava mais próximo”. Muito comunicativa e alegre, ela logo se enturmou no novo emprego.Um colega, o Gentil, indicou para ela fazer o curso de direção no SEST SENAT. Foi um treinamento de 45 dias e mais algumas semanas até pegar sua carteira profissional para dirigir ônibus e caminhões. Com isso, Angela se aproximou ainda mais de sua fantasia de conduzir grandes veículos, e outra vez as amizades deram dicas de qual caminho seguir. Outro amigo do SEST SENAT informou que a empresa Braso Lisboa estava com vagas abertas para mulheres. Era a chance que Ângela precisava para colocar as mãos no volante.
“Não foi fácil passar nos testes, para as mulheres as exigências eram dobradas, mas mesmo assim consegui a vaga”, relata. “Pedi as contas na São Silvestre, onde era cobradora, e fui dirigir para a Braso Lisboa em novembro de 1996”, relembra com sorriso nos lábios vermelhos, que combinam com as unhas da mesma cor. Ela saiu da empresa por pouco tempo, mas logo voltou para a Braso , onde está vinculada até hoje e trabalha para o sindicato.
Nos 17 anos em que passou com o pé no acelerador e as mãos seguras no volante, Ângela colheu muitos amigos, derrapou em situações amorosas, capotou em preconceitos, fez inúmeros trajetos, passou por apertos, teve duas filhas, entrou para o sindicato, sobreviveu a depressão e até foi demitida e readmitida. O que não falta na vida dessa mineira bem acariocada são emoções.
PRECONCEITO – Quando começou, em 1996, tinha apenas duas colegas, Maria e Demaura. Somente poucas empresas cariocas, segundo ela, aceitavam mulheres: Braso Lisboa, Verdan e CNT. “Sofri no início com o preconceito, me xingavam muito e ouvi inúmeras vezes: lugar de mulher é no fogão”.
Foi o preconceito que também levou Ângela a um dos momentos mais difíceis de sua vida de motorista. Durante uma viagem pela linha São Cristóvão/Ipanema, um homem idoso sentou no banco da frente ao lado dela e começou a se masturbar. “Eu chamei atenção umas três vezes e pedi para ele parar. Não parou. Aí quem parou fui eu, freando o carro e tirando ele na porrada para fora do ônibus”, lembra. Ângela deu azar porque uma mulher que estava na parada viu a cena e ligou para a empresa, denunciando a motorista por maltratar um idoso. Ao chegar na garagem foi demitida. “Foi um bafafá danado, pois estavam sendo injustos comigo e eu só pensava em me defender”, conta. Como Ângela não desiste facilmente, pediu para falar com a psicóloga e explicar o que tinha ocorrido. Entre as duas conseguiram testemunhas de dentro do ônibus que relataram o ocorrido. A motorista foi readmitida algumas semanas depois.
Para Ângela, dirigir é um vício. Ela ama a sua profissão, pois gosta de estar na rua, em contato com as pessoas que utilizam transporte coletivo. “Dirigir me proporcionou muitas alegrias, fiz muitas amizades, inclusive com passageiras e passageiros”, conta ela. “Vou nas festas de aniversário desde que uma das minhas amigas/passageiras tem 59, este ano, que fez 79 anos, não fui por causa da Covid-19”.
Gesticulando bastante, Ângela diz que a profissão de motorista é também injusta e que a maioria das pessoas não dá valor. Em 2013, ela adoeceu com o acúmulo de tarefas e seu nível de estresse bateu na curva da depressão. Foi diagnosticada com esgotamento físico e psicológico. Abandonou o volante, sua grande paixão, mas continuou na empresa. “Fiquei quatro meses sem conseguir falar com ninguém, em depressão”, lembra com tristeza. Tudo provocado, segundo ela, por uma discussão com uma passageira. “Tive um colapso nervoso e outros problemas de saúde provocados pelo exercício da profissão”.
Participação sindical, pandemia e salários baixos
Mãe de duas filhas e avó, Ângela entrou para a diretoria do Sindicato há quase 10 anos. “Uma das minhas características é ser brigona, principalmente quando se trata de lutar pelos direitos da categoria”, avisa, acrescentando não gostar de injustiça. Sua primeira experiência foi no Sintraturb-Rio – Sindicato dos Motoristas e Cobradores de Ônibus da Cidade do Rio de Janeiro. Hoje, Ângela ocupa o cargo de diretora do Sintrucad-Rio – Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Transporte Rodoviários de Passageiros Urbano, Intermunicipal e Interestadual, Fretamento, Turismo, Escolar, Cargas, Logísticas e Diferenciados do Município do Rio de Janeiro. A ex-motorista passa boa parte do seu tempo preocupada e tentando solucionar, com seus colegas, dois dos principais problemas atuais da categoria: salário e saúde.
Ângela no Fórum de Mulheres Trabalhadoras das Centrais Sindicais. O Brasil ocupa hoje o vergonhoso 5º lugar como país mais violento do mundo contra as mulheres.
“A mulher já nasce lutando e a luta é frequente durante toda a vida. Ainda não conseguimos a igualdade, mas não podemos desistir, por mais que eles coloquem obstáculos em nosso caminho. Para nós mulheres, atrás de toda a dificuldade sempre tem uma esperança”, Ângela Maria Lourenço
“Hoje, com esse governo, o trabalhador não tem direito nenhum. O que temos de fazer é trabalhar, porque os nossos direitos foram retirados com as reformas da Previdência e Trabalhista”, afirma Ângela, que continua filiada no MDB, e está entre as vozes do #forabolsonaro. Durante a pandemia, explica a motorista, se você não se cuidar, morre com a doença, e se trabalhar também pode morrer.
O salário, adverte Ângela, se deteriorou muito rápido e já existem rodoviários passando por graves dificuldades financeiras. Para amenizar a situação, o Sindicato vem distribuindo cestas básicas e formulando ações jurídicas por causa das demissões.
Para a advogada sócia do MS&P, Lara Machado Luedemann, os direitos trabalhistas vêm paulatinamente sendo atacados, desde 2017, com as alterações legislativas da Reforma Trabalhista”. O Sindicato, complementa a advogada, atravessa batalhas judiciais que abrangem ações coletivas de cunho político, como os processos que pleiteiam a contribuição sindical, e também ações que buscam o devido pagamento de salários e benefícios que diversas empresas deixam de cumprir.
A categoria, diz a advogada, sofre com as demissões em massa, bem como com os diversos descumprimentos contratuais, ocasionados pela falta de pagamento de salários, férias, 13º dos rodoviários. “O SINTRUCAD-Rio e o corpo jurídico que assessora as lides coletivas vêm desenvolvendo um trabalho em defesa dos direitos da categoria com pulso firme e sempre buscando a justiça”, afirma Lara..
“Estamos em 2021 sem saúde, sem vacina, sem salário”, alerta Ângela. Em um ano e quatro meses, quase 7 mil funcionários do transporte urbano foram demitidos no Rio de Janeiro, e 600 motoristas morreram de Covid-19 neste período, segundo dados do sindicato. Dezenas de empresas fecharam as portas.
A diretoria do Sintrucad-Rio tem como prioridade melhorar as condições de trabalho dos colegas. “Nunca pensei que depois de 25 anos de trabalho encontraria esse cenário, com vários colegas passando necessidade, com um alto índice de desemprego na categoria”.
Ângela não se intimida com a realidade, e lembra que tudo o que sabe foi a vida que lhe ensinou. “Aprendi na escola do mundo, tenho o segundo grau, que completei já adulta no SEST SENAT, trabalhando como motorista”. Quando diz isso, a ligação é interrompida e congela a imagem de Angela sorrindo.
Entre uma e outra chamada, passaram-se alguns bons minutos. Eis que o cenário muda. Angela reaparece no vídeo do celular toda de vermelho, de óculos, encostando a bicicleta na parede e sendo recebida por dois gatos e dois cães. Chegava em casa depois de mais um dia de trabalho e 15 minutos de pedalada, hábito que a ajuda a perder uns quilos, entre os bairros do Estácio, onde fica a sede do Sindicato, e Santo Cristo, seu lar.
Com seu característico largo sorriso e as mãos no guidom da bicicleta, Angela dá a receita desse bom humor: “Amo a vida, gosto de dançar, tomar cerveja, gosto de festa, gosto de casa cheia, e adoro sorrir. A gente tem de sorrir, porque a vida tá difícil, se ficar chorando, complica ainda mais”.
Angela, nasceu em 16 de dezembro de 1973 – Hoje, aos 48 anos, mora em Santo Cristo, no Rio de Janeiro. É mãe de Samira, 27 anos, e Emanuelle, 17, e tem um único neto, Bernardo, filho de Samira. Longe do volante há pouco mais de oito anos, é funcionária da Braso Lisboa e diretora do Sintrucad-Rio.