No dia do Advogado, a MS&P entrevistou o atual presidente da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Felipe Santa Cruz, hoje um dos mais ativos defensores da democracia e um dos principais opositores do presidente da república, Jair Messias Bolsonaro (sem partido), que tenta de muitas formas uma ruptura com o sistema democrático.
Filho único de Ana Lúcia e de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, seu pai foi um estudante de Direito desaparecido em 1974, preso por militares do Doi-Codi (Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna), no Rio de Janeiro. Felipe é formado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio e possui mestrado em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense. Antes de chegar ao cargo máximo da OAB na gestão 2019/2022, Felipe foi estagiário e depois sócio do escritório Machado Silva Advogados; além de comandar a OAB carioca e a Caixa de Assistência aos Advogados do Rio de Janeiro.
Nesta entrevista, realizada remotamente, Felipe falou sobre o papel dos advogados e da OAB no estado democrático de direito, comentou sobre a frágil democracia brasileira e traçou planos para seus últimos meses à frente da OAB. Segundo ele, a função da Ordem e da advocacia é defender a liberdade, as minorias, os direitos humanos e o meio ambiente.
Qual o papel do advogado no estado democrático de direito?
Felipe Santa Cruz, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB): O advogado, no nosso sistema constitucional e na própria história brasileira, tem um papel de destaque, na medida em que a advocacia brasileira sempre foi a principal responsável por dar voz à sociedade civil e ao cidadão. No Brasil, a advocacia tem um papel, que por exemplo, difere da estadunidense, que é uma profissão privada. Aqui existe um ônus público, a advocacia tem a função de ser um canal de manifestação dos anseios do povo, um povo que é carente de direitos. Então, a profissão ganhou esse destaque especial na Constituição de 1988, a própria função é constitucionalizada.
Por conta desse papel, que vai muito além do exercício privado da profissão do advogado, a advocacia tem como atribuição representar o cidadão, a sociedade civil organizada, inclusive, por meio da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que entende que representar o cidadão é o papel também da OAB.
Qual é hoje o papel político da OAB?
F.S.C – O papel da organização é de resistência democrática. O Brasil hoje vive um momento de grande ataque à democracia, tentativa de ruptura por quem está no poder. E a OAB, quando esses momentos ocorrem, ela tem um papel de garantir a liberdade. Digo sempre que a advocacia, os artistas e os jornalistas são aqueles que sofrem mais no momento em que a liberdade acaba. Somos profissões que precisam da liberdade para sobreviver. E a advocacia nesse momento precisa resistir, como sempre fez na história do Brasil. A OAB é resistência, é isso que nos fortalece.
Como você avalia a atuação dos poderes hoje no Brasil – Executivo, Legislativo, Judiciário?
F.S.C – Os nossos poderes estão, obviamente, em um grande momento de tensionamento. Nós temos um presidente da república que trabalha o tempo inteiro pela ruptura com a democracia. Nossas instituições têm resistido nesse modelo, ainda que imperfeito, nascido com a Constituição, em 1988. São 32 anos com tensões, turbulências e destituições – impeachment -, mas continuamos em uma democracia. Nossas instituições são resilientes, flexíveis, mas estão sendo testadas ao máximo.
A democracia está segura em nosso país?
F.S.C – A democracia não está segura em lugar nenhum. A democracia é uma planta tenra, frágil, ainda mais em um país que não tem uma experiência democrática tão longeva. O Brasil é um país de democracia recente, com vários períodos de ruptura, períodos de autoritarismo, com uma sociedade ainda muito autoritária, que guarda resquícios de uma visão violenta, autoritária, machista, escravocrata. O racismo e o machismo ainda são muito presentes. Numa sociedade, como a nossa, que dá vazão a tanto autoritarismo, por óbvio a democracia não está segura. Tanto é que nesse país, muitos iludidos e manipulados, escolheram um presidente da república que é claramente antidemocrático.
Como a OAB está agindo para dar viabilidade ao impeachment do presidente da República? São mais de 120 pedidos.
F.S.C – Impeachment é sempre uma solução dura, limite. Temos muita cautela com a utilização do impeachment. É óbvio que o Brasil tem muita dificuldade de discutir isso no meio de uma pandemia que, concretamente, impede a participação das pessoas em grandes atos na rua. Isso limita a participação da sociedade. Nós temos uma situação complexa no Congresso, onde não há a tramitação dos pedidos. Mas estamos acompanhando com atenção a CPI da Covid, que apura desmandos, inclusive, indícios de corrupção, no combate à pandemia, nesse momento tão trágico da nossa história. Acredito que qualquer novidade na CPI pode nos levar a destravar esse processo.
Qual o principal desafio da OAB?
F.S.C – Nosso principal desafio é cuidar da advocacia, que é cada vez mais complexa, é enorme, muito heterogênea. Também cuidar da democracia, do estado de direito, e cada vez mais aprofundar nossas bandeiras defendendo os Direitos Humanos e o Meio Ambiente. Essa é a pauta do futuro da advocacia brasileira. É o serviço que podemos prestar, inserindo o Brasil num projeto de sustentabilidade, fazendo com que o país volte a ter credibilidade no mundo. Creio que a advocacia tem um papel enorme no reequilíbrio das forças entre os poderes. É preciso que o judiciário recue deste papel de protagonismo exacerbado, que nos últimos anos o levou a um posicionamento político partidário. São muitas as missões da OAB. E além delas, precisamos cuidar diariamente para que a OAB não se perca no seu projeto.
Que a gente não esqueça que a advocacia brasileira é muito mais que um sindicato. Por mais que a gente respeite e saiba da importância de sindicatos, a função da OAB e da advocacia é defender a liberdade, as minorias, os Direitos Humanos , o Meio Ambiente. Não tenho dúvida que o papel da OAB é muito mais extenso do que está escrito na Constituição e na história do Brasil.
Qual a análise que você faz do seu mandato à frente da OAB?
F.S.C – Meu mandato acaba daqui a seis meses, e foi extenuante, muito difícil. Quis o destino que um filho de desaparecido político, membro de uma família perseguida, torturada, expulsa da faculdade, chegasse à presidência desta organização. Cresci num ambiente de resistência e sou presidente da OAB justamente nesse momento de tanta violência e arrogância por parte do autoritarismo.
Tantos e tão poderosos sonham com a volta da ditadura. Nossa posição foi de resistência, com erros e acertos, que são humanos, mas tenho certeza que resisti com colegas, que pensam como eu, no limite das minhas forças, no limite das minhas capacidades políticas, de tolerar, construir uma resistência. Penso que foi o melhor que pudemos fazer, nesse momento da história.
Quais as prioridades até o fim do mandato?
F.S.C – A prioridade é Democracia, Democracia e Democracia, até 31 de janeiro de 2022. Até lá a OAB terá a linha que nós aplicamos: progressista, democrática e corajosa. Não porque eu seja corajoso, nem porque eu seja progressista, nem que eu seja democrático, até pretendo e busco ser essas coisas, mas a entidade é isso: progressista, democrática e corajosa.