Impossível falar da luta contra o racismo no Brasil sem se deparar com a coragem e a determinação da hoje deputada federal pelo Rio de Janeiro, Benedita da Silva, a Bené (80 anos). Em todos esses anos ela quebrou tabus na vida e na política. Se elegeu em 1982 como a única vereadora do PT do Rio de Janeiro e foi a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Câmara dos Vereadores. Seu slogan: Mulher, Negra e Favelada, um triplo preconceito, a transformou num símbolo da luta do povo negro contra o racismo, contra o genocídio da juventude negra e contra o machismo.
Essas bandeiras alçaram Bené à Câmara dos Deputados na Constituinte de 1988. Neste mesmo ano realizou a primeira marcha nacional das mulheres negras. Em 1994 chegou à Câmara Alta do Congresso Nacional, sendo a primeira senadora negra do Brasil. Também foi vice-governadora, tendo Garotinho como governador (1999/2002), e a primeira governadora negra do Rio de Janeiro, com a saída de Garotinho para disputar a presidência da República, em 2002. No pouco tempo de seu governo adotou políticas de segurança pública baseada no respeito aos direitos dos cidadãos, das comunidades e no uso da inteligência policial. Coerente, nomeou 20% do governo com secretárias e secretários negros. Um pioneirismo na época, muito criticado.
Benedita da Silva foi também ministra de Desenvolvimento Social, no primeiro Governo de Lula, quando deu início ao programa Fome Zero, depois trocado para o Bolsa Família, e à implantação do Sistema Único de Assistência Social. Em 2010 se elegeu deputada federal e fez a relatoria da histórica PEC das Domésticas, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff, e que garantiu direitos trabalhistas para mais de 7 milhões de mulheres.
Como se define “uma negra teimosa”, Bené se reelegeu deputada federal em 2014 e 2018. Após consulta realizada por ela em nome do Movimento Negro, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aprovou, em 2020, a divisão do fundo eleitoral e de tempo de TV proporcional ao total de candidaturas negras, que passou a valer a partir da eleição de 2022. Benedita foi também autora do projeto de lei que criou a Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, para atender a maioria dos artistas e produtores culturais atingidos pela paralisação de seus trabalhos por causa da Covid-19.
Com 113.831 mil votos, Benedita da Silva foi reeleita deputada federal em outubro último. Em 14 de novembro atendeu solicitação do MS&P, concedendo entrevista às jornalistas Duda Hamilton e Malena Wilbert para falar sobre direitos das mulheres, direitos do povo negro e sua expectativa para um terceiro governo Lula. Não temos dúvidas que sua trajetória de luta por dignidade, pelo combate ao racismo e contra a exclusão social, a transformaram numa das mais importantes lideranças populares do país.
Uma boa leitura!
1- A senhora começou a trabalhar na luta pelos direitos das mulheres e pessoas negras ainda na década de 1980. Em retrospecto, o que você acha que mudou até hoje? Quais foram os principais marcos?
BENEDITA DA SILVA – Nós sofremos um brutal retrocesso dos direitos sociais e dos direitos das mulheres e do povo negro, desde o impeachment da presidenta Dilma Roussef, em 2016. Mas se agravou, sobretudo, com este governo assumidamente racista e misógino de Jair Messias Bolsonaro. A partir de 1º de janeiro de 2023 isso vai mudar, pois o Lula tem um compromisso de retomar as políticas públicas de combate ao racismo, de promoção da igualdade racial e de gênero. Esse segmento do eleitorado, especificamente o povo negro e as mulheres, votaram maciçamente em Lula para recuperar o tempo perdido e avançar ainda mais em nossas conquistas por uma vida digna e sem discriminação.
2 – Quem era Benedita da Silva antes da política?
BENEDITA DA SILVA – Nasci em 1942 na favela da praia do Pinto, no bairro do Leblon. Sou filha de pedreiro e mãe lavadeira de forte personalidade. Boa parte da minha vida passei no morro do Chapéu Mangueira, no Leme. Tive 13 irmãos e irmãs e todos nós trabalhamos desde criança para ajudar no sustento da casa. O envolvimento com a comunidade sempre foi importante para a nossa família. Sofri as piores dores que a condição de mulher pobre e negra passa num país desigual, racista e machista, como o nosso.
Para resistir à remoção de favelas, a principal luta comunitária da época da ditadura militar, criamos, nos anos 1970, o departamento feminino da Associação do Chapéu Mangueira. Evangélica da Assembleia de Deus, desde 1972, fui vendedora ambulante, empregada doméstica, servente de escola, auxiliar de enfermagem, professora da escola comunitária no Chapéu Mangueira – alfabetizando com o método Paulo Freire – e funcionária do Departamento Estadual de Trânsito (Detran).
Acreditava no engajamento consciente das mulheres nas lutas gerais e na defesa dos nossos direitos e enxergava o caminho da emancipação feminina da opressão machista. Participei de ações comunitárias com políticos do MDB e do Partido Comunista Brasileira, mas me filiei ao PT, logo depois de sua fundação em 1980.
3 – Hoje a maior parte das mulheres que sofrem violência, inclusive as que mais morrem na mão de homens, são negras. Os especialistas apontam que isso acontece, porque as mulheres negras são historicamente preteridas no mercado de trabalho. O que você acredita que pode ser feito para proteger essas mulheres?
BENEDITA DA SILVA – Nós já temos a Lei Maria da Penha contra a violência doméstica, mas precisamos avançar mais na proteção das mulheres ameaçadas e no próprio cumprimento desta Lei. Infelizmente, o presidente que perdeu a eleição fez um governo em defesa das armas, estimulou a violência e a discriminação contra as mulheres, o que ocasionou um número assustador de casos de violência.
O terceiro governo do presidente Lula vai, não apenas restabelecer as políticas e os direitos das mulheres, como contar com forte apoio do movimento de mulheres que cresceu muito nos últimos quatro anos em oposição ao presidente misógino.
4 – Além de políticas públicas para proteger as mulheres negras, quais são as iniciativas que a senhora considera mais importantes ou defende no momento para pessoas negras?
BENEDITA DA SILVA – O combate ao racismo estrutural, que está na pauta do novo governo Lula, inclusive, com aplicação de fato da Lei contra o Racismo. Lula já disse que vai retomar a história da África nas escolas para que por meio da educação se crie uma cultura antirracista entre os brasileiros.
Além disso, é muito importante a continuidade das cotas nas universidades públicas e a ocupação cada vez maior dos espaços de poder por representantes do povo negro, em especial das mulheres negras.
5 – O Brasil ainda engatinha na garantia dos Direitos Humanos. Do seu ponto de vista, como podemos começar a evoluir nesta pauta?
BENEDITA DA SILVA – Houve um imenso retrocesso no campo dos Direitos Humanos, uma negação total por parte deste governo Bolsonaro, de tendência fascista. Acredito que os direitos humanos talvez sejam o principal ponto para começar a derrotar o fascismo. A partir daí o Governo Lula vai retomar todas as políticas de Direitos Humanos, em particular, buscando conter as ações violentas dos agentes públicos nas favelas e periferias.
6 – Qual a sua expectativa de um terceiro Governo Lula? Quais as bandeiras mais urgentes? E qual o significado dessa frente que se formou com Alckmin, Marina Silva, Simone Tebet, Guilherme Boulos, Flávio Dino, entre outras lideranças.
BENEDITA DA SILVA – Minhas expectativas são as melhores possíveis, e essa ampla frente democrática precisa continuar com a formação do novo governo. O Lula no seu primeiro discurso, logo que foi proclamado o resultado das urnas, disse que o Brasil vai protagonizar internacionalmente o combate à fome, as desigualdades sociais, a promoção da paz mundial e a defesa do clima e das florestas. Todos esses eixos são essenciais não apenas para o Brasil, mas também para a própria sobrevivência da humanidade.