Entre um atendimento em sua clínica particular e o trabalho de perita judicial e assistente técnica para os casos envolvendo violência psicológica, Elisa Ferreira , conversou por whatsapp, em dois momentos, com a jornalista Duda Hamilton para abordar um tema que assombra os trabalhadores: a Síndrome de Burnout, considerada desde 1 de janeiro deste ano pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como uma doença desencadeada pelas atividades laborais, tendo como principais causas o tratamento injusto no trabalho, sobrecarga de trabalho, falta de clareza do papel do trabalhador(a), falta ou distorção na comunicação e suporte da liderança, pressão e tempo insuficiente na realização das atividades de trabalho.
Elisa Ferreira constata que a pandemia vem alastrando essa doença de trabalho e que, como outras doenças ocupacionais, são difíceis de caracterizar, principalmente, porque o sofrimento e o adoecimento relacionados ao trabalho são permeados por preconceito, precariedade no uso de recursos técnicos e um profundo desconhecimento da matéria. A psicóloga observa que as estratégias de proteção da saúde dos trabalhadores e trabalhadoras ainda não se configuram como prioridade no mundo do trabalho, onerando quase que exclusivamente o próprio trabalhador. Além de se recuperar de um quadro clínico gerado no trabalho, ele precisa iniciar uma jornada exigente, rumo a caracterização e nexo de seu adoecimento. O trabalhador já vulnerável precisa sensibilizar para seu caso, desde a previdência, até a justiça. Essa percorrida porta a porta, costuma ser mais um fator gerador de adoecimento e de agravo em uma condição que já é grave. Uma boa leitura!
Duda Hamilton -Quais são os primeiros sinais da Síndrome de Burnout?
Elisa Rita Ferreira de Andrade – O quadro clínico se apresenta como uma manifestação central, uma exaustão que surge de modo aparentemente brusco, sob forma de uma crise, e que manifesta sintomas, como cansaço excessivo – físico e mental -; dor de cabeça frequente; alterações no apetite; insônia; dificuldades na concentração; sentimentos de fracasso e insegurança; negatividade constante; sentimentos de derrota e desesperança; sentimentos de incompetência; alterações repentinas de humor; isolamento; fadiga; pressão alta; dores musculares; problemas gastrointestinais e alterações no batimento cardíaco. O autor que primeiro escreveu sobre a Síndrome de Burnout, Freudenberger, diz que antes do quadro se apresentar como um “incêndio devastador”, surge irritabilidade e mau humor extremos. O fenômeno central dessa vivência de esgotamento e exaustão vem acompanhado por uma reação emocional negativa de rejeição ao trabalho. Logo, o paciente passa a se desinteressar pelo trabalho e o que antes era realização e satisfação passa a ser indiferente ou irritante.
A Síndrome não afeta apenas o sentido que o trabalho possuía, mas atinge o trabalhador nas dimensões emocional e cognitiva, alterando o desempenho das funções executivas, como atenção, memória, ritmo de processamento de informações, bem como o equilíbrio emocional, permeado por explosões de raiva, sentimento de angústia, ansiedade extrema e sintomas depressivos. Por ser uma Síndrome causada por estresse prolongado e excessivo nos ambientes de trabalho, se apresenta como uma resposta adaptativa do organismo frente a situações que nos desafiam ou colocam em perigo. Assim, ativa um circuito envolvendo o córtex e o eixo hipotálamo-pituitária-adrenal. Nessa condição, a primeira resposta do nosso corpo é a liberação de adrenalina, hormônio de ação rápida e que leva a um aumento abrupto da nossa disposição e energia para enfrentar os desafios contidos nas situações de trabalho. Quanto mais situações desafiadoras, mais liberação desse hormônio. Toda vez que estamos em uma situação de risco, medo ou estresse, nosso sistema nervoso ativa o mecanismo reação de luta, fuga ou paralisia. As consequências são o aumento da tensão dos músculos, dos batimentos cardíacos, da frequência respiratória, da produção de suor, da dilatação pupilar e da liberação de açúcar. Todo estímulo ameaçador é captado pela área de nosso cérebro responsável pelas respostas emocionais.
É neste momento que o trabalhador reluta em levantar-se para ir trabalhar, apresentando uma resistência que pode ir desde a inibição da vontade até crises de choro, vômitos, tonturas e até desmaios diante da necessidade de sair para trabalhar. Essas manifestações e sintomas despertam um profundo sentimento de culpa pela forma que se está agindo em relação ao trabalho e com as pessoas que dependem de seu trabalho, alunos, pacientes, entre outros.
D.H: Qual o especialista que trata da Síndrome? Psicólogo, psiquiatra? Os dois estão aptos? Algum outro profissional apto?
E.F. – O cuidado e atenção à pessoa que está vivenciando a Síndrome de Burnout é multiprofissional, ou seja, tanto do psiquiatra quanto do psicólogo, haja vista a complexidade do quadro clínico e suas manifestações. Inicialmente é importante que o trabalhador ou trabalhadora seja atendida de forma a reduzir os sinais e sintomas presentes, como por exemplo buscando auxílio de medicações específicas receitadas por um médico psiquiatra É importante que os profissionais de saúde envolvidos na atenção a esses casos atuem de forma conjunta e coordenada. Segundo a minha experiência clínica, a pessoa nessa situação de adoecimento inicialmente necessita de escuta qualificada, validação e acolhimento para seu estado, além de urgência na intervenção clínica para redução dos sintomas que colocam o organismo em completo desequilíbrio físico e emocional. Geralmente, existe a necessidade de um período longo de afastamento dos estressores laborais para recuperação da energia dispensada e dos impactos físicos e emocionais gerados pela situação. Importante ressaltar que esse período de afastamento do trabalho é de responsabilidade do empregador, quem precisa prover as condições adequadas para recuperação da saúde do(a) trabalhador(a). Entenda-se por condições adequadas, o respeito ao tempo de afastamento para tratamento de saúde indicado pelos profissionais de saúde que acompanham a evolução do quadro clínico, a responsabilização e garantia do tratamento médico, psicológico necessários e emissão da CAT .
D.H: Como é feito o diagnóstico? É difícil de detectar? Pode ser confundida com outro transtorno?
E.F. – O diagnóstico é clínico, ou seja, o profissional irá avaliar os sintomas por meio de anamnese, levando em conta a atividade laboral.
O profissional de psicologia ou psiquiatria pode lançar mão do conjunto de recursos técnicos disponíveis em seu acervo profissional, como a utilização de avaliação psicológica por exemplo. Assim, é possível avaliar a condição psicológica atual do trabalhador, a sintomatologia e os impactos emocionais e cognitivo presentes, como os níveis de ansiedade, os sintomas e pensamentos depressivos , níveis de estresse e esgotamento, o decréscimo de energia, ideação suicida ou outros sinais presentes no quadro clínico em avaliação. Vale ressaltar que a Síndrome de Burnout é muito confundida com o estresse.
D.H: É difícil provar que o trabalhador tem a doença ocupacional?
E.F. – As doenças ocupacionais são difíceis de caracterizar, principalmente, porque de modo geral há uma precariedade na produção de informação que subsidie a compreensão do adoecimento mental relacionado ao trabalho. Ainda, as estratégias de proteção da saúde dos trabalhadores e trabalhadoras não são vistas como prioridade no mundo do trabalho. Por exemplo, não se avança nas ações que envolvem o planejamento do trabalho, seus processos e riscos, a prevenção do sofrimento/adoecimento, a atenção e cuidado na recuperação quando do adoecimento, o cuidado na reintegração do trabalhador no retorno ao trabalho e a readaptação adequada às atividades laborais.
Muito há que se avançar em compreensão dos setores saúde, assistência, previdência e justiça sobre saúde mental e trabalho. O trabalhador, não raro é onerado e se torna o único responsável pela prevenção do adoecimento e recuperação de sua saúde nos casos das doenças relacionadas ao trabalho. Muitas vezes o trabalhador passa por todas essas instâncias, sem receber acolhimento, atenção ou reparação quanto aos impactos à saúde gerados pelo trabalho.
A tarefa de caracterizar a doença e sua relação com a atividade laboral desenvolvida pelo trabalhador requer experiência clínica e disponibilidade para realizar a avaliação da relação entre o quadro clínico e a atividade profissional. O levantamento dos riscos, a carga, volume, ritmo de trabalho e os impactos gerados pela atividade precisam fazer parte da avaliação, caso contrário pode ser confundido com um quadro depressivo ou de estresse.
D.H:Como o trabalhador pode se prevenir da exaustão?
E.F. – Nem sempre o trabalhador pode se prevenir, principalmente se ele não está ciente dos riscos presentes na atividade profissional que executará, ou se não tem controle sobre o seu trabalho. Com muita frequência o trabalhador não participa da organização do seu trabalho, ou seja, essa tarefa é realizada por instâncias que habitualmente desconhecem os processos de trabalho e seus fluxos. Assim, o trabalhador se torna vulnerável, realizando atividades propostas por quem desconhece seus riscos e os possíveis impactos à sua saúde .
D.H: O que as empresas precisam mudar em suas rotinas?
E.F. – As empresas precisam construir e estruturar políticas e ações sérias e efetivas de proteção à saúde dos trabalhadores que façam parte da organização do próprio trabalho.
D.H: O home office/tele trabalho e a pandemia têm ajudado a acelerar a Síndrome? Por quê?
E.F. – Tenho observado que após a pandemia os números de adoecimento psíquico aumentaram muito, uma vez que a carga de trabalho, somada à precariedade das condições de trabalho,aumento da jornada de trabalho e pressão por produtividade também cresceu nesse período. Atendi uma paciente que trabalhava 12 horas diárias em home-office, enquanto atendia seu filho de 2 anos. Sua ansiedade extrema se dava por não ter com quem deixar o filho no expediente, o que a exigia que por vezes negligenciasse o filho, pois se pausasse o trabalho não conseguiria entregar a meta que lhe era exigida hora a hora por whatsapp.
D.H: Pela sua experiência em diagnosticar o Burnout, existe uma idade/geração mais propensa, ou é uma doença que não tem idade?
E.F. – O quadro se apresenta com mais frequência em homens e mulheres em idade produtiva, sendo mais preponderante em trabalhadoras entre 30 e 45 anos.
D.H: Quais as profissões que estão mais expostas à Síndrome?
E.F. – Atualmente, a síndrome aparece mais frequentemente em gerentes de vários níveis de administração e em outros executivos. Tais formas de gerenciamento, pressão e controle se encontram nas atividades do ramo financeiro, atingindo os bancários; na área da saúde, atingindo profissionais de saúde; na área da educação adoecendo os professores. Profissionais como bombeiros, policiais pilotos, motoristas de táxi e ônibus estão expostos ao risco de desenvolver Burnout. Mas a síndrome não se restringe a essas atividades, mas qualquer outra que atenda a um perfil de alta demanda de trabalho e baixo controle do trabalhador(a) sobre as atividades que realiza. O modelo de gestão gerencialista presente no mundo do trabalho, acaba por impor metas cada vez mais difíceis de atingir, adquirindo um caráter extenuante e podendo levar ao esgotamento profissional.